Parece que foi um dia desses, pois me lembro perfeitamente, meu pai e eu estávamos sozinhos em nossa chácara, em Belém do Pará, assistindo O Homem do Fundo do Mar e comendo apenas biscoitos cream cracker com mel. Talvez seja esse o momento de maior proximidade com ele em toda a minha infância, pelo menos é como lembro. E é a lembrança que mais gosto.
Acho que o que torna esse instante especial é o fato de que nunca tivemos muitos momentos “pai e filho”. Desde muito cedo fomos criando uma distância enorme, parte disso em função do pavor que sempre tive do meu pai. Ele era um cara poderoso, explosivo, intolerante, eu morria de medo de levar um esporro. Melhor era não chegar muito perto.
Não o vejo há muito mais de 10 anos, não nos falamos por telefone, apenas, de vez em quando, entrava um e-mail dele pedindo alguma coisa. Com a maturidade e, depois de ter eu mesmo me tornado pai, passei a entendê-lo melhor e as mágoas foram dissipadas. Sobrou amor de filho e admiração, mas junto com o sólido entendimento de que esse bem querer só era possível se mantida a distância. O velho Mauro Rodrigues Nogueira é perigoso!!!
Acho que a melhor referência que posso dar do meu pai é o personagem do filme Big Fish. Vida intensa, cheia de coisas que parecem inacreditáveis. A última que eu soube dele, pela boca de sua primeira esposa, foi de que quando o conheceu, numa festa, ele falou o tempo todo em espanhol. Só no segundo encontro foi saber que era brasileiro. Nada mais “ele”.
Que eu saiba ou me lembre, trabalhou na General Electric e na Folha de São Paulo; foi dono de frota de barcos de pesca e frigorífico exportador de pescados; foi fazendeiro e madeireiro; teve restaurante; foi lobista importante na constituição de 1988; escreveu livros de economia, a biografia do fundador de um grande banco e até contos eróticos; e, por fim, aproveitando a velhice e seus conhecimentos exotéricos, assumiu-se como mestre em yoga e tornou-se curandeiro através do uso de cristais.
Medo, culpa, remorso, arrependimento, vergonha, essas palavras nunca existiram para o velho, razão da minha grande admiração. Meu pai ganhava e perdia dinheiro sem culpa, saía e entrava em casamentos sem remorsos, sempre olhando pra frente, desapegado, tirando da vida tudo que ela podia dar. Foram quatro filhos com quatro mulheres diferentes e soube que, até um dia desses, estava, de novo, apaixonado, mesmo com 86 anos.
De repente, para minha surpresa, recebo o seguinte e-mail: “O pai está pifando, está na hora. Sempre te admirei”. Algo bateu em mim. Não era só o fato de não me pedir nada ou de me fazer um elogio. Tinha ali algo de desistência, de despedida mesmo. Fato é que, dias depois, minha irmã o interna num hospital, no Rio de Janeiro, velhinho, calado, muito doente, frágil. O velho cansou!
Aconteça o que acontecer, viverá sempre na minha memória e nas histórias que contarei dele. Tenho orgulho de ser seu filho. E de vez em quando, quando quiser sua companhia num dia quieto, vou abrir um pacote de bolacha cream cracker e deixar me levar pelo cheiro do mel.
Zé Mauro Nogueira – pro meu pai.